segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Sobre o Paulo

Descobri recentemente que não posso sair de casa de carro na noite do Réveillon sem encher meu rosto de lágrimas. Estávamos eu, meu melhor amigo, Cesinha, e a namorada dele, Luiza, indo para a Asa Norte buscar a Chana (que eu nem conhecia e depois descobri que se chamava Isabelle). Quando o carro se encontrava no meio da Ponte JK, comecei a chorar copiosamente.

Lá pra 2007, eu estava vivendo um momento de virada: era o fim do terrível ensino médio e a descoberta das coisas boas da vida no cursinho. Pela primeira vez em muito tempo eu fazia bons amigos, assumia maior protagonismo nas coisas e me propunha a coisas novas para mim, como andar pela cidade e viver aventuras na hora em que devia estar estudando e me enturmar com amigos de amigos. E, numa dessas, eu conheci o Paulo.

Paulo era um cara bastante curioso. Era um pouco mais alto que eu, tinha um sorriso meio desajeitado, sobrancelha eternamente franzida, olhar amistoso e uma assustadora calvície para sua idade. Acho que era isso o que mais chamava atenção nele disparado: onde estava o cabelo desse cara? 

Porém, o que ele não tinha de cabelo, ele tinha de simpatia. Aparentemente o cursinho... não, Brasília inteira o  cumprimentava. Ele já estava tentando entrar pra Direito há algum tempo, o suficiente para expandir seus contatos a altos níveis. E não era só isso: Paulo era uma das únicas pessoas que parecia ter uma receptividade infinita às pessoas, independente de como elas fossem. Não demorou muito para ele se interessar pelas esquisitices que eu tinha para falar e virarmos grandes amigos.

Eu demorei bem mais que ele para mensurar o quanto nossa amizade era importante. Quando menos esperava, Paulo me ligava propondo algum evento pouco promissor com nossos amigos de cursinho em comum e eu sempre soltava a clássica dos caroneiros:

"Po, adoraria ir, mas não tenho carro!"

Que prontamente era respondido por um:

"Deixa que eu te busco!"

Nada de mais, até eu descobrir como ele morava longe. De fato, se aqueles dinossaurinhos já encontraram o Vale Encantado, eles deviam ter passado perto da casa dele. E os eventos variavam entre jogar pôquer na praça de alimentações vazia do aeroporto de Brasília, matar tempo em algum lugar aberto 24h ou simplesmente rodar a cidade em busca de aventuras ou do melhor cachorro-quente. Certa vez ele me buscou em casa num sábado de manhã para levarmos o laptop dele pro conserto, pois ele tinha derramado água no teclado e quis secá-la com secador de cabelo ligado no vento quente. Desnecessário dizer que as teclas viraram uma pasta cinza quase que instantaneamente.

Tanto tempo juntos, começamos a compartilhar nossos segredos e angústias. Enquanto eu falava como me sentia desmotivado pra fazer vestibular e não fazia ideia de qual curso fazer, Paulo era mais simples: ele estava solitário e queria namorar pela primeira vez, só que todas as meninas por quem ele se interessou o arremessavam sem dó para a friendzone. Na época eu me sentia o maior comedor, pois geralmente estava acompanhado de alguma namorada extremamente bonita, sendo eu o cão chupando manga, logo o maior capacitado para ajudá-lo. Então muitas das nossas conversas, acho que a grande maioria, eram sobre conquistar mulheres. A julgar pela minha situação amorosa atual, meus conselhos na época devem ter feito mais mal do que bem.

Paulo deve ter se interessado por umas 38 garotas naquela época de cursinho, e todas elas deram um mole danado em rejeitá-lo. Ele era tão prestativo e dedicado a ponto de descobrir que a garota era apaixonada pelo céu de Brasília, tirar e revelar várias fotos deste e me levar para a papelaria do shopping para comprarmos material e confeccionarmos um álbum com essas fotografias. Mas aí, depois da abordagem fofa, ele ficava bastante assustador, indo até a casa das meninas e ligando pra elas de dentro do carro... burro pra caramba.

Ele também gostava de me assustar, principalmente enquanto me dava carona. Ele era extremamente seguro quanto às suas habilidades de motorista. Acelerava o carro a velocidades absurdas em lugares ermos, dava viradas e freadas bruscas só para ver minha cara de pânico enquanto me segurava na maçaneta da porta. Numa dessas, depois que ele resolveu assustar um grupo de pedestres na Asa Sul freando e desviando no limiar de um atropelamento, brigamos e eu falei o seguinte:

"Enquanto eu estiver com você no carro, não faça mais esse tipo de coisa."

Ele também era péssimo em Imagem & Ação. Minha nossa senhora...

Ah sim, em determinada época, nós dois já estávamos na UnB! Ele resolveu desistir de Direito e passou heroicamente para Engenharia Mecânica, enquanto eu já estava no meu quarto semestre de Arquitetura e Urbanismo! Inacreditavelmente eu ainda não tinha carro, e tinha uma namorada recém-chegada de um período de 1 ano em Caracas para cuidar. Paulo nos levou pra cima e pra baixo, nos ajudou em tudo e ficava ao nosso lado até nos momentos em que queríamos mais privacidade, sempre com muito humor e cara-de-pau.

E foi assim que aprendi a segurar vela.

Obrigado, cara!

Minha experiência mais memorável com ele foi no Réveillon de 2009 pra 2010. Nossa amiga Sílvia tinha marcado uma festinha na casa dela, no Lago Norte, e ele tinha ficado de passar na minha casa antes pra me buscar e irmos juntos. Só que a ceia aqui de casa demorou pra ficar pronta, e ele já tinha chegado. 

Resultado: lá estava ele comendo com minha família toda, e eu morrendo de pressa e angústia querendo matá-lo pela falta de urgência. Saímos de casa umas 23h45 e fomos dirigindo o mais rápido que as barreiras eletrônicas nos permitiam. Enquanto cruzávamos a Ponte JK, eu estava tentando sintonizar a Kiss FM, mas desistimos e ficamos ouvindo um culto pavoroso numa estação obscura e imitando o pastor por puro deboche.

Quando estávamos perto da casa da Sílvia, o primeiro fogo de artifício ilumina o céu. Paulo encosta o carro no acostamento, descemos, ele me abraça forte e me deseja feliz ano novo. Ficamos lá uns cinco minutos observando a queima de fogos e depois fomos curtir a festa com nossos outros amigos. Foi uma ótima noite, devo lhes dizer!

O tempo foi passando, fui dando mais atenção para a namorada e ele começou a sair mais com outros dois amigos do grupo, que pareciam na época serem melhores companhias para ele: pessoas com mais propriedade para dar dicas amorosas, mais interessantes e que também gostavam de dirigir perigosamente. Notamos nosso afastamento progressivo até um dia em que ele fugiu de uma aula que estava tendo no subsolo e foi me visitar na FAU, pois eu também estava matando aula. Conversamos sobre a vida, sobre coisas que estavam nos incomodando e depois o despachei de volta para a aula dele pois estava meio sem saco pra conversar na hora.

Sabe quando você fica um tempo sem conversar com a pessoa e ela começa a virar uma estranha aos poucos? Tava rolando isso.

Uma semana se passou mais ou menos, e num domingo de tarde recebo uma ligação do nosso amigo Marcelo, maior anfitrião do grupo:

"Luiz, tenho que te contar uma coisa. O Paulo morreu."

"Tá bom... eu fico com o videogame dele então muahuhahahaha"

"O que?"

"É, que besteira, cara! Mas diga aí..."

"O Paulo morreu mesmo."

"Não, isso é brincadeira."

Começo a ouvir o Marcelo chorando baixinho ao telefone:

"Não é, o Paulo morreu!"

"Posso te ligar mais tarde?"

"Pode."

"Tchau."

Saí do quarto e fui tomando consciência do que tinha acabado de ouvir enquanto andava até a cozinha. Meu pai e irmãs notaram que eu estava alterado e me perguntaram o que tinha acontecido. Eu só conseguia dizer "o Paulo morreu" repetidas vezes, até me acalmar e voltar para o quarto, onde ligaria uma segunda vez pro Marcelo pra saber os detalhes do ocorrido.

Paulo resolveu sair a toda no Lago Norte com o carro e foi direto num poste, que acertou o lado esquerdo de seu corpo em cheio. Morreu na hora, e seu corpo seria velado na segunda-feira, no Cemitério da Boa Esperança.

Fiquei tão transtornado que minha namorada da época veio até aqui em casa me consolar e se prestou a ir ao velório comigo no dia seguinte. Hoje, depois de terminado o namoro, posso dizer muita coisa ruim dela, mas sou eternamente grato pelo companheirismo dela nessa hora. Minha mãe, como sempre, se atrasou horrores pra sair de casa naquela manhã de segunda, e eu estava furioso com ela. Minha irmã mais velha foi por conta própria e me ligava dando detalhes de como chegar no cemitério, qual era o número da sala onde era o velório, até que sua última ligação foi em prantos e me dizendo:

"Felipe, vem logo! Jajá vão fechar o caixão! Ele tá tão machucado, coitado!"

Nessa hora, não me segurei: soltei cobras e lagartos em cima da minha mãe e finalmente conseguimos sair de casa. Como não podia deixar de ser, paramos no lugar mais distante possível dentro do cemitério, e fui correndo como um doido até a sala do velório.

De fato, corri tanto que a única coisa que me deteve foi dar de cara com o corpo do meu melhor amigo dentro do caixão. Notei meus amigos todos ao lado do caixão, os pais dele de pé me encarando e eu lá, sem reação, olhando pro Paulo de um jeito que nunca imaginaria vê-lo. Comecei a chorar histericamente e não consegui parar até depois de o enterrarem.

Uma das coisas que me arrependo, além de tê-lo deixado de lado antes de sua morte, foi meu último contato com ele. Dei um soco no seu peito e o chamei de idiota. Nessa hora, a mãe dele veio até mim e me abraçou e fiquei que nem uma criança de cinco anos falando como ele estava machucado. E ela, espírita como ele era, me disse que o corpo dele já não importava e que agora ele estava sendo recebido num lugar muito melhor.

Eu sou altamente cético quanto a uma vida após a morte, mas na hora aquelas palavras me confortaram muito. Sonhei com o Paulo umas 3 vezes desde então, e a cada visita dele nos meus sonhos ele parecia estar menos machucado, mais bem vestido e mais... cabeludo? No primeiro sonho, nos encontramos no ICC, perto da FAC, e eu fui extremamente indelicado com ele depois de uns minutos de conversa perguntando:

"Ei, você não está morto?"

E o fazendo tirar a camisa e mostrar as inúmeras cicatrizes no corpo. No segundo sonho a pergunta se repetiu e ele foi embora encabulado, e do terceiro sonho já não me lembro mais nada. Deve ter sido o que tivemos a melhor conversa e uma despedida decente.

Eu não posso sair de casa de carro na noite do Réveillon sem encher meu rosto de lágrimas, porque esse dia  e hora marcam o único momento em que o sinto perto de mim. O único pós-vida em que realmente acredito é aquele em que nossa marca perdura no mundo dos vivos depois que morremos. Paulo não teve tempo o suficiente para construir a vida que queria, arranjar uma namorada e conhecer meus futuros filhos, mas ele vai sempre viver dentro de mim e de todas as outras pessoas que o amavam e ainda sentem sua falta.

Fique em paz, cara!

(E vocês, tratem de dirigir direito e aproveitar bem o tempo com seus amigos!)

o/

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